Entrevista de TONI NEGRI por FEDERICO TOMASELLO

Federico Tomasello (FT): Há alguns anos, no livro Da fábrica à metrópole [2008, sem edição traduzida], você disse que a metrópole está para a multidão como antes a fábrica estava para a classe operária. Gostaria de falar hoje sobre como as transformações, os movimentos e a crise global estão relacionadas com as análises da metrópole, a partir do que se podem reler e interpretar muitas categorias do presente. Recentemente, — em especial, na intervenção Pela construção de coalizões multitudinárias na Europa, — você assinalou a necessidade de submeter à verificação crítica algumas categorias consolidadas da experiência pós-operaísta. Pergunto a você, antes de qualquer coisa, se o esquema de leitura da relação entre metrópole e multidão também deveria ser submetido à verificação e atualização?

Toni Negri (TN): Estamos hoje diante de uma situação completamente aberta quanto à metrópole. Por isso, discurso deve sim ser submetido a uma verificação, mas continuarei de qualquer modo a insistir sobre a passagem fábrica-metrópole, sem no entanto interpretar essa passagem de modo linear. É evidente que a metrópole seja alguma coisa de radicalmente diversa do que a fábrica. A metrópole é um lugar de produção que deve ser analisado em toda a sua especificidade. Mas também é verdade que ela hoje tenha se tornado o lugar de produção por excelência.

Em segundo lugar, o conjunto dos habitantes da cidade, a multidão cidadã, metropolitana, poderia ser considerada como a classe operária na fábrica? Também aqui, evidentemente, o discurso deve ser alargado, simplificado, arrancado das categorias iniciais. Mas ainda assim, não é uma metáfora afirmar que a metrópole esteja hoje para a multidão como a fábrica estava para a classe operária. É preciso insistir nesse elemento: não se trata meramente de uma metáfora porque uma relação de fato existe, ela acontece, embora a exploração na metrópole não seja simplesmente igual ao que era na fábrica.

Tenho muito receio das sociologias que, hoje, se mascaram atrás do fetiche da “espacialidade”, e que compreendem a metrópole exclusivamente a partir das diferenças e separações. Atrás dessa diversidade, existe um mecanismo de exploração que atua de maneira absolutamente sólida, e que pode ser chamado de “mecanismo extrativo”. Se nós assumirmos a passagem fábrica-metrópole, classe-multidão, devemos nos encontrar diante de uma situação não-metafórica que deve, apesar disso, ser interpretada por meio de novas categorias da exploração. Particularmente, da forma de exploração que hoje se chama extração, exploração extrativa, ou melhor, a relação de dominação extrativa.

É sobre o tema do extrativismo que hoje se deve insistir, sem, no entanto, jamais esquecer que o tecido sociológico da metrópole não pode ser identificado com a fábrica. Primeiro de tudo, porque a divisão do trabalho não é imediatamente funcional, não é disciplinar e, no limite, não é sequer de controle. Em segundo lugar, porque estamos numa fase diversa do desenvolvimento da exploração capitalista, o que Carlo Vercellone — a propósito da relação entre capital cognitivo e trabalho cognitivo — não chama mais de “pós-industrial”, mas de decisivamente informática. Uma fase que já começa a encontrar o seu próprio equilíbrio, quando a relação de exploração — nesta atual fase extrativa — se torna cada vez mais difícil de definir. Porque nesse âmbito há, seguramente, confusão e hibridação entre capital fixo e trabalho vivo, talvez reapropriação do capital fixo pelos próprios sujeitos, além de acontecer uma emergência de cooperação social que, provavelmente, também deva ser considerada como um elemento de autonomia.

FT: Você falou de mecanismo extrativo e sobre a cooperação e depois em autonomia, numa passagem que remete aos resultados e significados estruturalmente ambivalentes do conceito de metrópole, o que nos leva sempre a uma ordem dupla de questões. De uma parte, aos novos regimes de controle social, aos mecanismos de captura do valor socialmente produzido, à expropriação intensiva da força trabalho e da cooperação social urbana, ao rentismo, às especulações imobiliárias, à multiplicação de fronteiras internas ao espaço metropolitano. De outra parte, existe a metrópole como — estou citando Commonwealth [NT: Negri e Hardt, Harvard Press, 2009] — “corpo inorgânico da multidão”, território de produção de subjetividade e formas de vida, uma espacialidade específica para processo inéditos de subjetivação ou, para dizê-lo com as suas palavras, “folheados institucionais que reúnem o conjunto das paixões para gerar o comum”. Como deve ser analisada a relação entre essas duas versões da noção de metrópole? Trabalhando para valorizar os elementos de relativa autonomia recíproca, ou evidenciando-lhes as constantes interações? Quais, em resumo, as coordenadas fundamentais para um trabalho de pesquisa do tecido metropolitano, do ponto de vista da construção do comum?

TN: Creio que a economia da metrópole seja fundamentalmente unitária. Tanto o elemento da autonomia, quanto a exploração extrativa. Ambos os casos devem evidentemente ser considerados em sua consistência própria, na intensidade com que se dão. Mas é preciso assumir a centralidade da relação entre eles, recíproca.

E assim voltamos ao assunto, não metafórico, da metrópole que está para a multidão assim como, antes, a fábrica estava para a classe operária. Porque o conceito de capital é sempre duplo: há quem explora e quem é explorado, quem manda e quem resiste. O problema está então em como combinar uma definição intensiva dos sujeitos em questão com a dimensão relacional, que é uma dimensão de redefinição contínua e alternativa dos próprios sujeitos — eu o defino, você me define, e assim por diante ao infinito. É nesse vaivém que se determinam as qualidades dos sujeitos — com todos os desenvolvimentos antropológicos que vêm junto — e a intensidade das forças em campo. É preciso ver essa relação como um tecido, fluido mas extremamente forte, repleto de ondulações resultantes do choque, como se fossem duas grandes massas se encontrando.

Evidentemente, ir além deste nível real para um análise “micro”, consiste numa tarefa global. É a passagem da sociologia — uma sociologia marxista, que assume, portanto, não o fetichismo do objeto, mas a definição do sujeito como dinâmico — para a política como física operativa das paixões, que somente pode ser conduzida sobre o terreno “micro”. Este é o verdadeiro “alquatismo” [NT. Referência ao operaísta Romano Alquati, que conceituou originalmente o método da copesquisa, nos anos 1960]: não se trata de uma copesquisa banal, mas da capacidade de definir e fazer funcionar a pesquisa como máquina operativa de construção de paixões coletivas. Um pouco daquele método que achamos em Maquiavel, Spinoza, no Marx histórico e, hoje, em Foucault, ou ainda melhor, diversamente, na tentativa deleuziano-guattariana dos Mil Platôs [1980], — que também reduz, por um lado, uma abstração excessiva da realidade e, por outro, uma atenção escassa à realidade de classe.

“É preciso absolutamente arrancar o tema do consumo do moralismo e da estupidez de uma antropologia do homem puro, do homem nu”.

FT: Você assinalou os “desenvolvimentos antropológicos” que surgem nas análises da mutação do tecido metropolitano e dos processos de acumulação capitalista, e depois adentrou no terreno da metodologia, no sentido que seja necessário fazer do pensamento e da pesquisa uma ferramenta para a intervenção no presente. Na metrópole contemporânea, é possível retraçar condições aludindo também a uma nova dimensão antropológica do política? qual a postura de pesquisa nesse sentido?

TN: Também a temática antropológica deve ser abordada em duas perspectivas. De uma parte, existe a questão do que podemos chamar de “forma mental da antropologia pós-industrial”, ou seja, a reconquista do “capital fixo” pelo sujeito, a parte mecânica que o homem se reapropria, e com o que rompe o mando exclusivo do capital. O elemento importante a considerar, aqui, é que o mando capitalista já não opera mais simplesmente agregando elementos tecnológicos no corpo humano. Agora, de maneira igualmente importante, ocorre uma capacidade de reapropriação e transformação autônoma dos elementos maquínicos na estrutura do humano.

Hoje, quando se fala em “paixões sociais”, se deve falar em paixões ligadas ao consumo passivo de tecnologias, mas também e sobretudo falar do consumo ativo. O tema do consumo deve ser absolutamente arrancado — como teve de sê-lo no caso do operário industrial — do moralismo e da estupidez de uma antropologia do homem puro, do homem nu. O homem não é mais puro, o trabalhador nunca foi despido — essas figuras são sempre vestidas e sujas — mas é o modo como se vestem e como operam que nos apresenta a única realidade deles. Isto vale para a definição do horizonte de necessidades e da pobreza. É claro que a pobreza, hoje, é alguma coisa de completamente diferente daquilo que era há um século: hoje, quando se fala em pobreza, se está falando em vez disso em instrumentos de comunicação, na capacidade de integração social no nível da cooperação, e certamente não definindo a pobreza apenas do ponto de vista alimentar ou habitacional.

Além disso, de outro lado, se pode perceber na metrópole uma rica consistência antropológica, no nível sobre o que se desenvolve inteiramente a autonomia dos sujeitos, e que é ligada a tendências, a comportamentos que são geradores, isto é, comuns. Este elemento de comunalidade (quer passiva, quer ativa) se dá fundamentalmente na metrópole e é isto que deve ser percebido na pesquisa. Ademais, existem mil diferenças entre centro e periferia, mil níveis de singularidade, figuras extremamente diversas que já tornaram impossíveis na metrópole não só a planificação e a programação internas, mas a própria topologia. Agora, é a consistência antropológica radical que precisa ser reconstruída, em sua descontinuidade. Descontinuidade do objeto e do sujeito, o que não significa no entanto descontinuidade ou ruptura de um método (a copesquisa), que guarda ainda hoje valor heurístico. Por exemplo: uma abordagem antropológica retoma, a meu ver, as novas condições de vida e produção da metrópole, ante a existência do trabalhador cognitivo, renovando aquele método que identificava no operário industrial uma capacidade de resistência e uma força de irradiação geral de suas formas.

“Não existe marginalização total como não existe inclusão total: é preciso lutar contra a mistificação da marginalização tanto quanto da inclusão por meio do consumo”.

FT: Você citou os temas do consumo e da pobreza. Vamos nos delongar ainda nesses elementos. Há quem, por exemplo se referindo a segmentos do espaço urbano ocidental marcados hoje por altíssimas taxas de desocupação juvenil, coloca em relevo a emergência de uma condição de dispensabilidade, de uma nova condição de pobreza caracterizada por uma marginalização radical, em relação aos processos de produção, acumulação e valorização. Você crê que essas perspectivas possam descrever eficazmente segmentos da cidade contemporânea?

TN: É absolutamente verdade que, hoje, o capital não consegue identificar de maneira unívoca na metrópole, — isto é, no lugar privilegiado da sua acumulação e valorização, — os sujeitos que estão imbricados no nível produtivo, da acumulação. Não consegue identificá-los, mas consegue, apesar de tudo, governá-los, “pastoreá-los”, comandá-los em termos pastorais, logo, de maneira muito geral. Mas é falso que existam níveis de “total” marginalização — seria como dizer que existem os tais ”homens nus” — e isto vale em qualquer forma de organização social. Pelo menos nos grandes “centros capitalistas”, cujo eixo central ia da Rússia até os Estados Unidos e agora se prolongou aos ditos BRICs.

Deve-se prestar atenção também ao fato que o desenvolvimento capitalista procede por “saltos”. Existem certas zonas totalmente marginais, a respeito do dito desenvolvimento, mas isto não ocorre mais linearmente, e sim por estágios sucessivos. Veja, por exemplo, que hoje as mais altas taxas de difusão da telefonia celular se dão na África. Em suma, não existe uma marginalização total, assim como não existem terrenos de inclusão “total”: é preciso lutar contra a mistificação da marginalização tanto quanto da inclusão por meio do consumo. Para mim, esta exclusão “total” parece constituir um elemento polêmico privilegiado — é necessário destruir esses álibis para uma ação coletiva construída sobre a piedade, a compaixão, a superstição religiosa. Quando falamos de pobreza, falamos de condições que tocam à gente explorada, ou seja, submetida de qualquer maneira a um mecanismo extrativo, e a gente explorada não é nunca totalmente pobre. Para extrair alguma coisa é preciso haver uma realidade humana que produza, nem mesmo o escravo é um excluído total do mecanismo produtivo.

FT: Assumamos, agora, outro ponto de vista radical sobre a cidade contemporânea: no último livro de David Harvey, — Rebel cities, — por vezes referindo-se a seu trabalho com Michael Hardt, ele percorre o tema da metrópole passando pelas duas faces, a da renda e acumulação, e a das lutas. A sua proposta remete substancialmente à possibilidade de retomar, reinventar e atualizar o direito lefebvriano à cidade, para reinscrevê-lo nas práticas sociais de produção do comum [commoning]. Acredita que se trate de uma estratégia à altura das metrópoles de nosso tempo?

TN: Aqui vamos devagar. Acredito, na verdade, que o “direito à cidade” seja em vez disso qualificado em termos históricos, que seja assim o direito à cidade da gente que — para dar um exemplo — morava em Courneuve [na periferia] e tinha de trabalhar no centro de Paris ou nas fábricas em Billancourt. Era o direito de atravessar aquela cidade vivaz e bela, vindo de uma periferia miserável. Para dar outro exemplo: era o direito dos operários que vinham da Itália meridional para ocupar Turim, em vez de continuarem confinados no cinturão periférico. O direito à cidade é, em suma, um conceito ligado à reestruturação urbana do período fordista. Esta era a cidade de H. Lefebvre, que não compreende ainda o mecanismo de produção do comum que, a mim, parece hoje constituir o elemento central.

Já a tese à Harvey insiste demais sobre a divisão metropolitana do proletariado, e assim propõe uma visão pessimista e negativa, a respeito da capacidade de associação, reorganização interna e insurreição — a capacidade que o proletariado urbano começou a demonstrar na cidade pós-fordista. As reflexões de Harvey não compreendem ainda os movimentos autônomos e a nova política que expõem, por exemplo, os novos sujeitos do trabalho cognitivo.

“A cidade do futuro não será construída tanto sobre o valor imobiliário, quanto sobre o valor obtido mediante a soma e integração dos serviços”.

FT: Harvey trabalha para mostrar as “raízes urbanas” das grandes crises capitalistas, fundamentalmente analisando o papel capital que o funcionamento do mercado imobiliário tinha exercido em qualquer uma das crises. Sem dúvida, foi assim no colapso de 2008, mas você acredita que o tema possa ser decisivo também para interrogar desenvolvimentos futuros?

TN: Não creio que o problema do rentismo urbano permaneça tão central. Antes disso, estou convencido que nesse respeito haverá uma concessão capitalista consistente. A renda urbana manterá certo relevo, mas não nesses níveis; vamos caminhar, penso eu, em direção ao modelo das cidades alemãs, onde a mixagem dos valores imobiliários é muito vasta. Certamente, nas cidades turísticas como Veneza, Florença etc, as imobiliárias terão sempre um valor enorme, assim como perto de lugares atravessados pelos “megaeventos”. Porém, mais em geral, a metrópole deve mesmo tornar-se uma cidade híbrida.

Isso é inevitável, se analisarmos os custos de manutenção da própria cidade: o elemento sempre mais fundamental nesses custos se torna o custo do comum. Há tempos venho sustentando que os custos de reprodução da cidade superam a capacidade da renda urbana de produzi-los. Esta última é atacada diretamente por impostos, custos de serviços, que terminam por exceder as rendas imobiliárias. Não se trata tanto de gentrificação, quanto de uma normalização do consumo urbano. A acumulação passa, ao contrário, através do uso produtivo da máquina, que vai trabalhar de maneira global, geral: ela produz ideias, linguagens, potências, modos de vida, redes, conhecimentos, mas sobretudo produz cooperação. Existe uma enorme “combinação”, que custa tantíssimo ao capital, e que oferece grandíssimo retorno — que está, apesar de tudo, ligada à estrutura do comum e não ao rentismo.

Resumindo, a meu ver, a cidade que teremos não será construída tanto sobre o valor imobiliário, quanto sobre o valor obtido mediante a soma e integração dos serviços: este dispositivo é que qualifica uma cidade, porque a qualifica enquanto fábrica. Fábrica da multidão: o que não alude somente ao fato que a multidão produz, como também fala da quantidade de serviços em sua constante expansão. Se agora se fala de colocar internet banda larga gratuita na cidade, isso é feito porque produz, porque a gente a usa, a requer, porque faz funcionar melhor a cidade, porque existem pessoas capazes de apropriar-se dela, porque representa uma forma de cooperação que atravessa a cidade.

“No Brasil, a luta entrou no jogo não apenas o tema da restruturação da cidade, mas também contra os símbolos e baluartes de uma consciência metropolitana branca. As favelas são as “outras cidades” vivas dentro da metrópole”.

FT: Mudemos de assunto, mais especificamente, para falar da face da metrópole como lugar de produção de subjetividade e insubordinação: proponho a você, em longa curva, repassar os acontecimentos e experiências nos últimos anos. Recentemente, você viajou para a Turquia e o Brasil, onde aconteceram mobilizações e movimentos propriamente metropolitanos. Quais foram os elementos mais significativos dessas experiências? Quais os nexos e as descontinuidades em relação a movimentos como Occupy e os Indignados (15-M)?

No Brasil, a luta começou com uma reivindicação do tipo “direito à cidade” — a tarifa dos transportes urbanos. Começou assim, para imediatamente se converter numa revolta contra as políticas de desenvolvimento que aparentemente reproduzem a estrutura urbana e estão ligadas às “grandes obras”, a grandes intervenções sobre a estrutura urbana. Particularmente, no Rio de Janeiro, essas políticas costuram investimentos em grandes eventos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, a práticas contemporâneas de exclusão urbana e “revitalização” privatista das grandes estruturas comunitárias que são as favelas.

Retornando incidentalmente a um ponto tocado antes: as favelas encarnam a crítica vivente a quem pensa que a miséria e a pobreza possam ser “totais”; as favelas são, em vez disso, inclusive na pobreza, grandes pulmões da economia, de comportamentos produtivos e novas figuras antropológicas, de novas linguagens, de culturas específicas, e não apenas locais, mas verdadeiramente culturas metropolitanas de altíssimo valor. Além disso, certamente, nelas vivem também elementos de comunidade perversa, sobre o que pouco discutem os sociólogos do Rio — a não ser quando a crise chega ao cerne — como, por exemplo, o mercado do narcotráfico, verdadeiramente destrutivo das comunidades, em particular, do ponto de vista ético-político.

No Brasil, a luta começou assim, mas depois entrou no jogo não apenas o tema da restruturação da cidade, mas também todos os símbolos e baluartes de uma consciência metropolitana branca, formada quando a cidade se emancipou do escravismo. As favelas são as “outras cidades” vivas dentro da metrópole. O ataque às favelas se tornou assim o ponto onde as políticas de “desenvolvimento urbano” colidiram, ao esquecer que as favelas podem ser “outras”, mas também estão “dentro” da produção metropolitana.

O grupo dirigente do PT, o governo planificador socialista, confundiu desenvolvimento com produção industrial, no sentido mais rígido da palavra. A estupidez deste paleo-industrialismo foi subitamente revelada graças a uma resistência rica e vivaz. A oposição foi fortíssima. Uma oposição que certamente não é de natureza “ecológica”, como também não fora em Gezi Park, em Istambul, mas sim voltada a manter um espaço comunitário vivo dentro da metrópole. Aqui está a mutação antropológica: o operário industrial identificava a cidade com a fábrica e fugia; hoje, ao contrário, é voltando à metrópole que se dá a descoberta de uma Comuna da produção social. O caráter metropolitano é produtivo, não ecológico, e é sobre isso que, sem dúvida, age seja a revolta de Gezi Park, seja aquela do Rio ou de São Paulo.

FT: Você estaria falando de lutas dentro e contra o desenvolvimento?

TN: Eu diria, na realidade, lutas da produção contra o desenvolvimento, lutas produtivas contra o desenvolvimento capitalista. É preciso começar a distinguir radicalmente produção e desenvolvimento. Sobre isto, o Manifesto Aceleracionista [tradução da UniNômade]— que recentemente comentei no site da EuroNômade — é muito belo e preciso. É preciso reconquistar um conceito de produção contra o conceito de desenvolvimento capitalista. E isto vale certamente para Istambul, onde algumas camadas do trabalho cognitivo estão completamente europeizadas, idênticas as que você poderia encontrar em Paris ou Berlim, e que reagiram de maneira dura ante a incapacidade das elites de compreender a linguagem deles. Diversa, no entanto, é a situação em Ancara, onde foram mais relevantes os elementos políticos ligados à laicidade, porque o aperto fundamentalista islamista do governo pesou muito.

Trata-se de reivindicações de reconhecimento da comunidade produtiva, feitas pelos trabalhadores cognitivos, sobre quem atua sobretudo a extração de valor, da parte do capital. É sobre esse terreno, ambíguo e ambivalente quanto se queira, mas realíssimo, que se dá uma transformação radical da realidade descrita, por exemplo, por D. Harvey. É deste ponto de vista que devem ser observadas também experiências como o Occupy e os Indignados. Que evidentemente sejam lutas contra a crise como essa veio se delineando no ocidente: uma crise de rearranjo global da sociedade, para remodelá-la sobre as necessidades do capital extrativo. Trata-se, portanto, de um processo de reorganização da metrópole e da divisão do trabalho, que contempla a destruição do welfare e a construção de novas hierarquias. Por isso, da Espanha à Grécia — e também na Itália, por exemplo, com a manifestação de 19 de outubro (19-O/2013) — as lutas do welfare todas se caracterizaram sobre o terreno metropolitano, como uma espécie de sindicalismo social metropolitano.

“A horizontalidade total pode muito bem valer na fase de agitação, mas é ilusório quando se busca verdadeiramente construir e gerir um processo de transformação constitucional”.

FT: Eis aí o movimento dos Indignados e do Occupy: movimentos contra a crise, nascidos nela e por ela, mas que, além disso, de maneira para alguns surpreendente, organizaram o próprio discurso ao redor da reivindicação de democracia radical, fazendo deste elemento, mais do que de instâncias diretamente socioeconômicas, a cifra mais significativa e de ruptura.

TN: … de acordo com você. Não quero, porém, falando dos movimentos, nos distanciássemos do discurso especificamente metropolitano. É de qualquer maneira importante que estejam claros os pontos que, daquela passagem política, daquela experiência de lutas, devam ser reunidos e acolhidos, e aqueles que, ao contrário, devam ser submetidos à crítica. A horizontalidade total — seja em fase constituinte, seja numa imaginária constituição futura — que aquele tecido de mobilizações reivindica, me parece um modelo completamente abstrato de estrutura política. Pode muito bem valer na fase de agitação, mas é ilusório quando se busca verdadeiramente construir e gerir um processo de transformação constitucional.

Penso, em vez disso, num modelo de contrapoder, ou melhor, de contrapoderes difusos, que é um modelo mais aberto e capaz de mediar eficaz e efetivamente os modos e as dificuldades de um processo constituinte em relação a uma horizontalidade que se revela impotente, ignorando a diversidade territorial e espacial que qualquer movimento político deve, ao invés, assumir e valorizar.

Os Indignados produziram genuínos saltos adiante, quando se reposicionaram no território; a revolta de Gezi Park ganha relevância quando se radica nos bairros, quando, isto é, cada bairro organiza um contrapoder efetivo e quando eles se tornam capazes de atacar verticalmente a estrutura de comando. A conferir bem, portanto, essa mesma nova composição metropolitana, para colocar em questão a pertinência do modelo da horizontalidade total na construção de projetos duradouros.

FT: O mesmo discurso vale para a experiência estadunidense do Occupy?

TN: Quanto à experiência Occupy, a situação é parcialmente diversa. Trata-se de um movimento global, que nasce do problema dos despejos, nasce portanto em torno do tema da dívida. E através do discurso sobre a dívida, chega à Wall Street. Mas, além disso, sobre o nível da dívida, o Occupy produz pouco, senão em sua grande capacidade simbólica de uma luta que, enquanto americana, é “vista” em todo o mundo. Mas, quando medida sobre o terreno da eficácia, foi uma das experiências mais fracas dos últimos anos. De fato, foi liquidada pelo poder de maneira muito pesada: de um lado, por meio do discurso do “duplo extremismo” — Occupy contra Tea Party — e, por outra, com certa inflexão radical das políticas dos democratas, que absorveram energias do movimento em chave eleitoral, e que levaram à eleição do prefeito de Blasio. Elemento importante de Occupy se conserva, apesar disso, no fato de ter emergido como mobilização ligada à moradia, contra o rentismo imobiliário, em torno de um elemento central para qualquer agenda do sindicalismo metropolitano.

“Na origem desses tumultos há sempre a morte de um jovem pelas mãos da polícia”.

FT: Depois de pincelar os movimentos e lutas mais importantes dos últimos anos, podemos falar de outro fenômeno  metropolitano, mas que parece mais “espúrio”, do ponto de vista político, o tumulto [sommossa]. Da rebelião de Los Angeles de 1992, até as revoltas londrinas de 2011, passando pelos ocorridos nas periferias francesas de 2005: novos comportamentos coletivos parecem estar radicados nos territórios urbanos, a ponto de definir uma característica quase objetiva — como mostra o trabalho de “etnografia política do presente”, do seu amigo Alain Bertho. Uma temática a que, em Commonwealth, você e Hardt dedicavam uma Genealogia da rebelião, desde a longa história das jacqueries, até as revoltas urbanas contemporâneas, definidas como “exercícios de liberdade”, movidos pelo sentimento de indignação, ainda insuficientes mas sem dúvida necessários, a ponto que hoje “jacqueries, lutas de reapropriação e revoltas metropolitanas tenham se tornado o inimigo essencial do biopoder capitalista”. Trata-se, entretanto, de ocorridos que permaneceram compreendidos segundo traços enigmáticos, dificilmente compreensíveis pelas noções mais clássicas, com que o pensamento moderno se habituou a ler a realidade social. Uma forma de compreensão se dá com a ordem do discurso que atribui a essas manifestações um caráter de impoliticidade radical. O que acha do discurso da impoliticidade? E como interpretar os tumultos urbanos contemporâneos?

TN: Trata-se de ocorridos em cuja origem há sempre a morte de um jovem pelas mãos da polícia. Pode-se dizer que é alguém que morre em forma simbólica para representar a exclusão. Então, há uma heteronomia dos efeitos da ordem democrática, da ordem da igualdade formal, que explode. Essas revoltas nascem essencialmente ante o ato político arquétipo, que é um assassinato injustificado cometido pelo poder. Por isso seria idiota defini-las como “impolíticas”, porque se trata de revoltas que nascem de um insulto a um direito fundamental, o direito de viver. O drama de Antígona seria por acaso impolítico? Acontece uma indignação política que, a seguir, se irradia pelo tecido metropolitano sempre mais tecnologicamente disponível e permeável à difusão de indignações e do tumulto. Trata-se de lutas que se definem e se organizam através dos novos instrumentos de comunicação, na combinação oculto/visível que sempre caracterizou as jacqueries. Também elas tinham um conteúdo extremamente preciso: se debatiam contra o aumento de impostos e as derramas, que empobreciam ainda mais quem não tinha. Este era o conteúdo delas, e é digno de nota como os burgueses pretendiam que, quando eles falassem de taxas, se tratava de política; quando falassem de impostos, eis aí o impolítico.

Claramente se falamos de política só fazendo referência à tábua formal dos direitos e sua tradução por meio da representação parlamentar, então esses movimentos podem ser tranquilamente definidos como “impolíticos”. Tudo depende de como se pensa a política: se é pensada de maneira marxista, a política é a capacidade de romper a estrutura do mercado de trabalho e do salário, e a ordem capitalista que os determinam; neste caso, se torna difícil excluir do horizonte político os fenômenos de insubordinação urbana, que podem, ao contrário, desenvolver-se como lutas propriamente sindicais ou políticas no terreno social da metrópole. Porque atacam à exclusão atravessada pela organização racial do mercado de trabalho, das práticas de salário, ou das operações de baixa redistribuição e enquadramento da força-trabalho – capital variável. Também a espontaneidade dessas lutas tem caráter político importante, e de qualquer maneira há sempre uma espontaneidade apenas inicial, porque depois com a irradiação, a expressão, a repetição, aparecem sempre elementos de organização. Que mais tarde essas lutas consigam se desenvolver em estruturas estáveis ou não, este é um problema que vai além dos limites de nossa conversação.

FT: Em suma, que o discurso da metrópole como fábrica, da metrópole pós-fordista, forneça um quadro também para as análises desses fenômenos sociais e comportamentos coletivos?

TN: O discurso da metrópole produtiva, pós-fordista, é o único quadro para compreender esses fenômenos até o fundo. Na metrópole contemporânea, o biopoder do capital e a biopolítica dos sujeitos se misturam e se enfrentam: não existem outros lugares em que essa condição seja dada de maneira tão clara. A revolta, na metrópole contemporânea, surge das violações de um direito elementar — o direito a viver — e depois se expande, e o faz normalmente, concentrando-se sobre elementos de opressão mais fortes. Que, frequentemente, têm a ver com a dimensão racial e a exclusão e discriminação derivadas. Aí também se insere a exclusão do consumo: mobs que realizam uma revolta de apropriação de bens, onde a demanda de consumo tem determinação de classe e contra o racismo. O componente racial e de classe se entretecem na demanda apropriadora do consumo: tudo isto é bastante eficaz para mostrar qual seja o ponto de atrito, a pobreza, a exploração. Me diverte a execração que os burgueses demonstram ante os jovens que roubam bens destinados unicamente aos burgueses.

“Como acontece ainda hoje no Brasil, onde se reconhecem juntos na luta trabalhadores cognitivos e jovens das favelas que, depois de séculos de dominação racial, conquistaram o direito à palavra”.

FT: Você introduziu também o tema da raça, que emergiu como chave de leitura prevalente destes fenômenos metropolitanos. Chave de leitura poliforme e polissêmica, que foi usada em perspectivas mais diversas, dos discursos securitários e reacionários àqueles ligados às insurgências pós-coloniais, até todas as interpretações que foram feitas, a vários títulos, referindo-se à categoria de “reconhecimento”…

TN: Sim, certo, o reconhecimento, é uma categoria importante, mas é preciso estar atento ao tema, que provavelmente vale mais para outras camadas de “exílio do trabalho organizado”, que para este tipo de revoltas, quando provavelmente a instância de reconhecimento se realiza sobre terreno religioso. A temática do reconhecimento é sempre portadora de uma ambiguidade, que está ligada ao elemento de bloqueio ou interiorização da revolta que, em maneira astuta, a burguesia procura injetar nas “massas multicoloridas”, “multiculturais”, da metrópole. Do nosso ponto de vista, por outro lado, o discurso da revolta está relacionado a  subjetividades caracterizadas em termos raciais fortes, como acontece no rastro de tumultos desde os anos 1990, desde pelo menos Los Angeles, até recentemente Londres. E como acontece ainda hoje no Brasil, onde — vale a pena sublinhar — se reconhecem juntos na luta trabalhadores cognitivos e jovens das favelas que, depois de séculos de dominação racial, conquistaram o direito à palavra. Esta ruptura da rigidez do domínio capitalista, em termos raciais, constitui um evento extraordinário.

Em suma, é evidente que causas e características das revoltas metropolitanas podem ser as mais diversas, o caráter distintivo se encontra na resposta à: “contra o que se rebela?” Ora, quem é estigmatizado do ponto de vista racial, se rebela contra certa ordem capitalista, quem está excluído da estrutura do mercado de trabalho formal se rebela contra a multiplicação do peso da exploração: de qualquer forma, esses são excluídos mas não da exploração e da acumulação capitalista. O grande problema, do ponto de vista político, é então conseguir estar dentro desses processos e, eventualmente, rompê-los quando se deem puramente em termos de “reconhecimento” (geralmente identitário e produzindo mecanismos de autorreplicação em separado), para reconhecer melhor do que isso que a simples diversidade — isto é, a unidade do mando — é imposta a todos.

FT: Você sublinhou que na origem das revoltas urbanas contemporâneas existem quase sempre comportamentos violentos da polícia, que culminam em assassinato: isto nos leva ao tema da metrópole como espaço de exceção, território em que a autoridade do estado suspende, ocasionalmente, o direito, os direitos, deixando viger só a força sobre o que o ordenamento se apoia, e que o garante. Como interpretar a temática e sua relevância no nosso tempo?

TN: Sem dúvida, a tentativa de tornar excepcional a norma da ordem é frequentemente repetida. E no entanto já o fato que seja repetido, mostra que não é uma constante. A exceção é uma necessidade colocada para determinar o controle, quando o controle seja precária. Dito isto, o que não se deve nunca esquecer é que, na relação regra/exceção, o elemento decisivo é a regulação estatal, o exercício do controle da parte do poder soberano. Nesta perspectiva, não se pode confundir a “exceção” soberana (a ditadura) exercitada em termos constitucionais e as normas excepcionais decretadas com o fim de manter a ordem pública. Tudo isso nos leva à memória o acontecido em Gênova, em 2001, mas uma excepcionalidade daquele gênero me parece (felizmente) sempre mais provável do que a constitucional. Isto para dizer que, para mim, parece muito perigoso identificar uma com a outra, como amiúde é feito — em maneira pouco razoável e “extremista”. A ideia de exceção é, para mim, fundamentalmente ligada a momentos muito altos da luta de classe, e é portanto subordinada também à altura do conflito — não é, por isso, o que dizem Agamben e outros, em termos sofisticadamente metafísicos, ou ingenuamente anarquistas. Não veem porque os patrões devem reconhecer e designar o próprio poder como excepcional, num momento em que, senão todas, quase todas as coisas vão bem para eles.

É preciso retomar a relação de classe como relação de guerra, para compreender quando e como a exceção possa ser instaurada e transformar-se de provisão de ordem pública à norma constitucional. A ciência política dos grandes historiadores latinos, dos estadistas ciceronianos, era muito atenta a esta junção: Tácito trabalhava para mostrar que a exceção está ligada a momentos de conflito que são, de outra forma, irresolúveis. A exceção emerge quando acontece um estado de guerra, a menos de querer sustentar que somos em um estado perene de guerra — o que me pareceria muito estranho. A violência da exceção, diferente da coberta, muito mais eficaz da exercida cotidianamente, explode quando o poder tem, de qualquer maneira, a necessidade e a urgência.

“A categoria “violência sem conflito” me parece estranha”.

FT: No seu discurso, o tema da exceção aparece então ligado à luta de classe. Um conflito em que, como anotava já Walter Benjamin no princípio do século passado, as instituições do movimento operário ocidental buscavam excluir tendencialmente o recurso à violência, deixando-a apenas ameaçada, “representada” na forma da greve. Interrogando fenômenos do presente, Michel Wieviorka, ao contrário, falou numa “violência sem conflito”: parece a você uma categoria apropriada a nosso tempo?

Penso contrariamente que há conflito: que é a crise senão um conflito levado ao extremo, um conflito que continua desde a primeira crise pós-moderna em 1973? Quarenta anos de crise, que talvez esteja terminando com vantagem para o capital, com a fixação de um redesenho radical das formas de acumulação. E todavia: diante de uma recomposição de longa duração de um “capitalismo da acumulação” — uma nova acumulação originária completamente independente de qualquer medida ou relação com o salário e o capital variável — se apresenta não tanto uma crise dada e irresolúvel,  quanto uma resistência implacável, socialmente difusa, sobre o que repousa, além disso, o excedente produtivo do proletariado cognitivo. O conflito persiste.

Nesta perspectiva, a categoria “violência sem conflito” me parece estranha. É uma das fórmulas habituais com que se elimina o conflito em nome da violência — que ressoa similarmente as concepções da oniexcepcionalidade da norma estatal. O conflito é sempre também sem violência. Depois chega a violência: por quê? Olhemos à dita violência “extremista”. O que foi? Uma violência cujo movimento foi constrito porque ninguém a escutava, e por isso era uma força, mas a sua voz se tornou constitucionalmente inaudível.

O grande calvário das pessoas que fizeram os anos 1970 foi, mais do que ter exercido a violência, não ter conseguido exercer um excedente de protesto suficiente para ser escutadas, para tornarem-se audíveis. Um excedente que era objetivo: nas lutas das fábricas, sociais, numa situação de enorme efervescência que, porém, quando se tornou inaudível, ao contrário de reforçar-se no terreno social, subitamente teve um caminho militarista e foi, por conseguinte, militarmente reprimida. Assim, há conflito — nisso ocorre de trabalhar e desenvolver um excedente que bloqueie a exceção.

“Em segundo lugar, sempre há violência, não é um elemento para ser reprimido, mas para ser organizado. O problema não é a violência, mas a legitimidade da violência”.

FT: Estamos agora longe do tema inicial, e terminamos na problemática em que acabamos aportando: em O Trabalho de Dioniso, você propunha uma “crítica prática da violência”, para despedaçar as análises dela sobre o terreno da especulação abstrata, para calcá-la sobre suas manifestações materiais. Concluímos então o nosso bate-papo com uma breve reflexão sobre o círculo violência/medo, que parece cifra fundamental de muitas representações da cidade contemporânea.

TN: Não se deve mais operar uma sobredeterminação da violência como tal. Sobretudo, dar um soco num guarda não é a mesma coisa que um assassinato e, ao contrário, qualquer tipo de delito, de violência, vem qualificado como delito contra a soberania. Isto é absurdo, porque põe uma homologia entre um ato de violência qualquer e um assassinato: o mecanismo da soberania aplaina tudo, sobredeterminando os conflitos sociais. Em segundo lugar, sempre há violência, não é um elemento para ser reprimido, mas para ser organizado. A violência não existe como dado natural, mas enquanto elemento ligado à estrutura do sistema, de um sistema que exerce uma violência considerada legítima. Então o problema não é a violência, mas a legitimidade da violência, e qualquer tipo de organização subversiva se coloca enquanto tal.

Ora, o que é a legitimidade? É a relação que existe entre o exercício do comando e o consenso a respeito de suas finalidades, em nome do que o comando é exercido. Quando essa relação é determinada simplesmente pelas exigências do desenvolvimento capitalista, existem margens particularmente amplas onde o exercício da legitimidade não funciona, falta ou é torto. De fato, a legitimidade imposta nestas condições, é igual à violência. A reação a uma ordem capitalista, imposta em nome do estado, não pode ser senão uma resposta violenta e legítima, enquanto se subtrai de uma violência suja — a violência do ordenamento legal que encobre o poder do capital. Não é violência, é contraviolência, é contrapoder, uma contraexpressão de legitimidade. São legítimos todos os comportamentos relacionados à resistência diante de uma ordem injusta. Mas quem determina o fato que uma ordem seja justa ou não? De um lado, a consciência de cada um dos sujeitos, alterada historicamente dentro do desenvolvimento da relação social capitalista. De outro lado, o comportamento das funções de comando que temos defronte. O problema de definir a legitimidade nasce desta relação, e deste ponto de vista a violência define o poder mas também o seu contrário, também a potência biopolítica dos sujeitos.

Não há, portanto, um modo objetivo de assegurar a legitimidade, também porque ela é sempre e somente uma relação e um meio. Por isso, devem ser observados com olhar crítico também autores, como W. Benjamin, que quando estão investidos da violência do regime nazista, não sabendo explica-la, assumem-na do ponto de vista teológico, renunciando frequentemente a fazer — mas este, em particular, não é o caso de Benjamin — autocrítica acerca da política comunista dos anos 1920. A ideia de irracionalidade da violência é fundamental na cultura burguesa, porque não é nunca exitosa em exercer um comando democrático, que não tivesse a forma da dominação capitalista. Enquanto a democracia poderia ser o contrário da dominação, quando os direitos do homem fossem reconhecidos não formalmente  (= regras do mercado), mas materialmente (= instituições do comum). Assim se pode determinar uma exaltação do consenso, num quadro em que a violência se pode dar somente quando é consentida, e não por mecanismos de representação, mas de participação efetiva.

Queremos nos mover na direção da eliminação da violência? O modelo da democracia absoluta de Spinoza, por exemplo, é um modelo em que um mínimo de violência será possível, porque implica o consenso efetivo de todos no terreno da igualdade, determinando cada percurso social. Mas também neste caso, visto que os homens não são sempre bons, querem contrapoderes efetivos que funcionem para garantir o processo.

O medo, por último, é um elemento fundamental na criação de uma violência sistêmica. E é o conceito (a paixão) essencial a respeito do que se constrói a eminência da soberania. P medo é sempre medo do homem no confronto com outro homem, e é portanto a base da soberania como resposta ao medo do homem lobo do homem, na sociedade individualista. Que tudo isto fosse pouco convincente, que fosse um instrumento essencial de uma única ordem civil possível — individualista e burguesa — é evidente. Vale, no entanto, observador que ali, no próprio cenário hobbesiano, o medo era de qualquer maneira elemento construtivo, que por meio da alienação dos direitos se podia organizar o poder soberano. E depois seguia a ordem. Agora, em vez de o medo construir ordem, ele organiza a precariedade, que reproduz o próprio medo, o medo é o grande continente de cada dispositivo de nossa vida. Desta forma, o desejo não vai mais do medo à segurança, mas do medo ao medo, da incerteza à incerteza. O medo não produz a soberania, mas distende a dominação. Reproduz a dominação, no sentido que cada um deve ter medo do outro, à noite não pode sair de casa, as mulheres devem estar atentas a estupradores que estão em cada esquina, e a televisão mostra somente notícias criminais e policialescas etc. O medo é, nesse sentido, um elemento central para a reorganização das formas sociais capitalistas, e encarna provavelmente o ponto mais escuro da crise da democracia neoliberal: a ponto de, hoje, a serenidade poder tranquilamente ser considerada uma atitude revolucionária.

 Tradução: Bruno Cava

 

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