di BRUNO CAVA.

03/08/2012

Ho scritto questo testo per affrontare direttamente alcuni degli usi miserabili del discorso sullo stato di eccezione che si fanno, dal punto di vista teorico e politico, nel dibattito brasiliano.
Mi riferisco all’articolo di Bia Barbosa pubblicato nel sito web di sinistra Carta Maior (“Brasil forjado na ditadura representa estado de exceção permanente”), all’intervento del governatore del Rio Grande do Sul, Tarso Genro pubblicato nello stesso sito (“Estado de exceção no Brasil?”)  e all’ottimo articolo pubblicato da Hugo Albuquerque nel blog Descurvo (“A polêmica de Tarso Genrso, Estado de Exceção e Democracia“). L’incapacità di analisi del nostro tempo arriva all’ottusità quando, in un recente seminario, si afferma che la dittatura militare (1964-1985) ha vinto e oggi viviamo nel peggiore dei mondi, dove i dispositivi di potere sono dappertutto, perversi e onniscienti, catturando tutto come in un invincibile purgatorio. Si tratta di un riduzionismo delle equazioni storiche che si avvicina all’apocalittico e che serve solo per mobilitare ancora di più le paure e le passioni tristi di chi lotta. Un discorso che applica per vie traverse il ruolo dello Stato, interessato a spaventare e smobilitare la resistenza. Bisogna rimettere i puntini sulle “i” e riconoscere l’avanzamento determinato da alcune politiche sociali e misure democratiche che sono state adottate in Brasile a partire dal 1985, in particolare durante i due mandati del Presidente Lula. Non si è trattato di mere misure di governo, ma del risultato di mobilitazioni e lotte storiche, articolate specialmente a partire dal passaggio dagli anni ’70 agli anni ’80, teatro della costituzione del Partito dei Lavoratori (Partido dos Trabahadores, PT). In quest’articolo, riorganizzo schematicamente la formazione del discorso sullo stato di eccezione nel periodo tre le due guerre mondiali. Annoderò quindi alcuni dei fili sciolti del pensiero per abbozzare una prospettiva potente. Un punto di vista che non si arrenda a visioni catastrofiche e unilaterali della politica e che colga la potenzialità dei movimenti e delle lotte come motori della storia. Non si tratta di rinunciare al concetto di stato di eccezione ma, allo stesso modo di Benajamin e Pasukanis, di sottrarlo agli usi impotenti o fascisti.

Kant tinha um estilo desapaixonado. Ele elaborou um problema fundamental. O filósofo colocou o problema da lei, dos limites da ação. Quid iuris? qual o direito? o que numa situação é de direito? Kant dá uma resposta universalista. Os seres racionais podem chegar ao universal mediante uma cognição da razão. Diante da diversidade infinita dos fenômenos percebidos, se podem deduzir imperativos (que são um tipo de máxima) aplicáveis em qualquer contexto. A dedução ocorre graças às sínteses transcendentais, com vigência universal exatamente porque independem da experiência. Em qualquer situação, essas sínteses conformam regras práticas. Quando o agente racional conscientemente opta por se ajustar a elas, a ação é dita moral. Em suma, uma ontologia subtrativa que reduz o númeno incognoscível à ciência normativa dos fenômenos.

A legião de seguidores neokantianos desdobrou essa ciência para o mundo do direito e, ao redor do problema, tem acontecido boa parte da atividade jurídica nos últimos dois séculos. Grosso modo, existem fatos e normas. A operação jurídica consiste em aplicar a norma ao fato. Descobrir, numa situação específica, o direito aplicável. Limitar a conduta do agente racional pelo dentro e fora do que a norma permite. Eis aí a problemática do liberalismo eminentemente legalista: até onde se pode ir, em cada âmbito da vida? onde se pode dizer que termina a minha liberdade, e começa a do outro? em que condição, o exercício do direito vira abuso? até onde vai a liberdade individual e deve ocorrer uma ingerência estatal? Cabe ao poder constituído inscrever o que é de direito na vontade abstrata da lei, a norma isonômica, válida para todos. Aos operadores do direito, compete aplicá-la desapaixonadamente.

Nos anos 1920, o alemão Carl Schmitt, um jurista conservador, católico e apaixonado, polemizou com os ensinamentos de Kant. Seu principal rival teórico foi o jurista austríaco e judeu Hans Kelsen, artífice máximo de uma tendência (em parte) tributária de Kant. À época, Kelsen sistematizava o normativismo, que assegurava autonomia à ciência jurídica e delimitava claramente as condições transcendentais de conhecimento do fato jurídico. Por exemplo, autonomia em relação à política.

Carl Schmitt problematizou a divisão entre dentro e fora do direito, entre fato e norma, com que o operador desapaixonado deveria operar. Para ele, se davam relações topológicas mais complexas. Entre o dentro e o fora, algo intervém para “amarrar” fatos e normas, para que a força cogente, a violência consiga operar mediada por dentro das normas, algo que termina por transformar a natureza abstrata e universal das regras, máximas e silogismos. Para ele, situação e norma não podem ser rigorosamente exteriores uma à outra. Toda norma pressupõe um âmbito normal de aplicação, onde algo, esse operador misterioso, excedente, imprevisível, —porém nunca neutro, — inscreve como substância do poder. Que decide não propriamente do direito por si mesmo, como norma, mas da situação. É aí que Schmitt, inspirado em Thomas Hobbes e Donoso Cortés, introduz a sua ideia de poder soberano. Para o jurista, o soberano se caracteriza por essa anomalia excessiva, que não pode ser compreendida pela norma ou por seu âmbito de aplicação. Um desarranjo que não está propriamente dentro nem fora, e que circula na franja de indistinção. Sai a noção kantiana de limite, entra o limiar, um espaço de indecidível nas frinchas entre fato e norma, vida e direito. O poder soberano transita nele como sobre uma fita de Moebius. E invariavelmente decide, coisa que nenhum normativismo poderia desenganar com suas guilhotinas epistemológicas e seus positivismos desencantados. Com Schmitt, o componente político se queda inextricável do direito. Isto quer dizer que o sujeito soberano, uma força extrajurídica, também está implicado no estado de direito e opera intensivamentealém da legalidade. Pode suspender a ordem legal, para aplicar medidas com força de lei sob o pretexto de restaurá-la. Menos por agir fora da lei, do que por decidir da situação, da sua necessidade intrínseca, do âmbito de vigência/suspensão em que algo como o direito poderia existir em primeiro lugar. A intervenção soberana se investe de força de lei sem lei.

Tem-se assim, com Schmitt, um pensamento forte da exceção, do latim ex caepere, “capturar fora”. A soberania consiste no princípio excepcional de vinculação do direito à vida, a codificação da violência interna a qualquer ordenamento jurídico que se pretenda eficaz. No contexto da Alemanha dos anos 1920, isto levou-o a polemizar com positivistas como Kelsen e a própria Constituição de Weimar, um modelo de constituição de caráter liberal e parlamentarista. O autor conservador promovia o reforço à autoridade do estado soberano e seus agentes executivos. Na década de 1930, enquanto Kelsen fugia, primeiro para a Áustria (1933) e depois para os Estados Unidos (1940); Carl Schmitt se acomodava na cátedra de principal jurista do regime nazista, mais um fantoche intelectual de Hitler, escrevendo textos como “O führer protege o direito.”  Ao liberalismo, imputou a “fraqueza” do judaísmo. A força, a firmeza e o ímpeto germânicos estariam sendo diluídos nas abstrações da lei, da “doença de Weimar”. Sobre a Noite dos Longos Punhais (1934), embriagado do espírito nazista, disse: “O ato do Führer é de uma jurisdição autêntica, não se subordinando à justiça, pois seu ato é mesmo de uma justiça superior[1]. Apesar dos usos “à esquerda” para as teorias de Schmitt — o assalto ao liberalismo jurídico, a autonomia do político, as reflexões sobre a ordem internacional,  — a sua biografia é insalvável. Mais tarde, ainda foi perseguido pelos próprios nazistas e terminou a vida no ostracismo social.

Outro pensador judeu também polemizou com Schmitt. Walter Benjamin chegou a demonstrar admiração pelo “teórico fascista do direito público”.[2] Mas Benjamin, diferente de Kelsen, não era liberal. Era marxista. Se, geralmente, os liberais opõem a ordem do direito à violência soberana e os “excessos” do estado, o filósofo propõe uma terceira via. Propõe combater o estado de exceção fascista não com o estado de direito, mas com outra espécie de estado de exceção. Na realidade, trata-se de uma segunda via, já que, como teorizava, estado de direito e estado de exceção se imbricam no mundo real do poder. Essa via benjaminiana se exprime pelo enigmático conceito de “estado de exceção efetivo”. Este não visa a conservar o direito existente, nem instituir um novo, uma nova ordem jurídica “revolucionária”. O estado de exceção efetivo depõe o direito como um todo, rasgando a fita de Moebius. A violência revolucionária desinscreve a ordenação violenta da vida. Destrói a ordem posta, — definida não só pelas leis, mas sobretudo pelas situações materiais em que elas se fazem necessárias e operam coercitivamente. Em suma, a revolução desativa a maquinaria do direito estatal, a violência interna às estruturas de poder. Um autêntico materialismo messiânico, na junção de marxismo e judaísmo. Lamentavelmente, perseguido pelos nazistas, Benjamin não sobreviveu à guerra.

Um quarto personagem, contemporâneo aos três citados, merece ser convocado ao debate. Em 1925, fora do mainstream intelectual europeu,Eugênio Pachukanis publicou a primeira teoria marxista do direito. Teoria marxista do direito e não teoria do direito marxista. Para o intelectual russo, não pode existir direito comunista. “O problema da extinção do direito é pedra de toque pela qual nós medimos o grau de proximidade de um jurista do marxismo e do leninismo[3]. O problema colocado por Pachukanis não é tanto se o direito estatal é expressão dos interesses da classe dominante. Isso é óbvio. O problema é: por que a classe dominante precisa de algo como o direito para governar? É pergunta similar a de Marx, quando questiona por que a classe capitalista precisa do instituto do trabalho assalariado, em vez de comandar diretamente por meio dos regimes da escravidão ou da servidão? Para Pachukanis, a forma jurídica se constitui de um momento dialético do processo do capital. Está inteiramente subsumida a esse modo histórico-político de produção de sujeitos e objetos. Não que o direito tenha sido inventado pelo capitalismo. Com efeito, o capitalismo redimensionou e reassentou o direito pré-capitalista, agora como peça da engrenagem do sistema produtivo. Daí a abstração determinada pelos sujeitos iguais de direito, “livres” para se obrigarem, contratarem e venderem a própria força de trabalho. Se o capital abstrai das forças produtivas o trabalhador assalariado como indivíduo, família e cidadão; faz o mesmo com o sujeito de direitos, seja na expressão privada (direito civil) ou pública (direito constitucional, administrativo, eleitoral etc). Livre para vender a si próprio e comprar mercadorias, constrangido que está pela organização geral da desigualdade e da escassez.

Por isso, escrevendo no interior dos calores da revolução russa, Pachukanis via o caminho revolucionário na direção da abolição do direito e do estado. A forma jurídica embute um processo dialético que não pode ser neutro. Seria cínico pensar em usar o direito “à esquerda”, como instrumento da classe proletária. Ele não acredita em punitivismo estatal “à esquerda”, por exemplo. Seria tão ingênuo e cínico quanto acreditar num “capitalismo sem capitalistas”. O sistema penal deve ser um dos primeiros aparatos a ser abolido numa sociedade comunista. Uma posição corajosa, se pensarmos como, nos anos 1920 e 30, a União Soviética construiu com mão de ferro um robusto capitalismo de estado. E um estado forte implica um direito forte. As posições de Pachukanis se tornaram perigosas. Depois de intrincadas escaramuças teóricas ao longo da década de 1930, com sutis tergiversações e condoídas concessões, acabou “sumido” por ordem de Stálin, em 1937. Sua obra de “trotskista sabotador” só viria a ser reabilitada na URSS em 1957.

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Hoje, 90 anos depois, estão na crista da onda os debates sobre o estado de exceção e as relações entre direito, violência e capitalismo. No Brasil, coordenada por um professor uspiano, uma coleção inteira de livros percorre esses tópicos. Linhas teóricas se multiplicam na academia, referenciadas no filósofo italiano Giorgio Agamben. E é bom que estejam na crista. Nada contra o trabalho de desconstrução teórica dos institutos do direito e do estado em geral, inclusive dos dogmas da legalidade, da autoridade constituída e do estado democrático de direito. Um trabalho de radicalidades que, aliás, não pode deixar de dialogar com as lutas afirmativas e práticas de resistência. Claro, a crítica às formas de poder continua indispensável.

O que não dá pra engolir é o uso indigente das teorias do estado de exceção, de uns tempos pra cá, pelo esquerdismo. Indigente do ponto de vista teórico e político. As análises têm convergido no diagnóstico da exceção generalizada, achatando períodos históricos, forças políticas e governos. Tudo parece se explicar pelo avanço de um poder quase demoníaco, prescindindo de perspectiva de resistência. Um pessimismo que rapidamente recodifica qualquer acontecimento como mais uma etapa da vitória desse poder pervasivo e monstruoso. Defende-se até que as políticas sociais dos governos de esquerda constituam dispositivos perversos de dominação. Programas de grande impacto social, — o Bolsa Família, o Prouni, —  não passariam de instrumentos de controle da massa ignara. O tom beira o apocalíptico quando se declara que, na verdade, a ditadura venceu. Que a Constituição de 1988 instituiu a ditadura como regra geral. A redemocratização? Uma farsa. A Nova República normalizou o estado de exceção, de modo que agora não evocam nenhum escândalo a militarização dos territórios e a criminalização dos pobres. No Brasil de 2012, viveríamos num estado de exceção permanente em que novos fascismos e novos imperialismos se disseminam por toda a parte e sem escapatória.

Não. A ditadura não venceu. Não conquistou seus objetivos. E ela não recuou por causa da “crise mundial”.  A ditadura recuou porque houve resistência e afirmação de alternativa, já que a “crise mundial” por si mesma, como qualquer crise, não é difícil de absorver num regime autoritário. A história pode ser contada pelo lado do chicote ou das costas. Do poder constituído ou do constituinte. E as costas estão ligadas a um peito, uma cabeça e quatro membros. Algo de muito significativo aconteceu entre 1985 e 2012. Não estamos parados no tempo, como se o nosso problema fosse o mesmo daqueles que resistiram à ditadura militar.

A redemocratização foi um produto das lutas. Resultou da construção de uma força política que tensionou com o bloco de poder conservador brasileiro. Uma força composta por movimentos sociais, partidos, coletivos, grupos e pessoas, uma multiplicidade de indignações, vozes e paixões: operários e sindicalistas, pastorais, artistas, estudantes secundaristas e universitários, sem terras, ativistas do movimento negro e indigenista, feministas, intelectuais e ainda um longo etcétera — tudo isso que se agenciou no Partido dos Trabalhadores dos anos 1980, cujo ponto de chegada foi o governo Lula. Sejamos materialistas. O governo Lula e muitas de suas políticas não significaram, simplesmente, a traição desse acúmulo de lutas de décadas, mas o exato resultado de uma equação histórica que essas lutas puderam conseguir, na sua potência e razão internas.

Sim, é verdade que pobres e negros, pobres e índios, pobres e todos quantos que resistem nos muitos Pinheirinhos têm de se debater em um estado de exceção permanente. Tem de se mexer todos os dias apenas para existir, sendo absurdo qualquer prescrição de imobilismo. É indisputável. Que uma lógica preconceituosa, neo-escravocrata, policialesca e, às vezes, simplesmente assassina, pauta a (des)ocupação dos territórios pelo poder constituído. É indisputável. É do próprio funcionamento de um estado e um direito calcados na dominação chantagista de poucos sobre muitos, no governo dos medos e inseguranças, e nas mentiras da representação. “A polícia é o golpe de estado permanente”. Como negar helicópteros de guerra sobre favelas, a porrada sobre dependentes químicos, camelôs, sem tetos, indígenas e estudantes, as sinistras hidrelétricas e as unidades pacificadoras da pobreza? Se não é prudente renunciar à luta por dentro dos aparatos judiciais, pela via da legalidade; não se pode alimentar a ilusão de que o judiciário, no movimento sistêmico, esteja do lado das ações constituintes por novos direitos. Quando muito, o estado reconhece um direito já afirmado pela resistência, que ele não consegue mais fingir a inexistência nem contornar o respaldo social. Como, por exemplo, o reconhecimento da constitucionalidade das cotas raciais, arrancadas do bloco conservador pela força do movimento negro — e não por concessão de mão beijada e muito menos instrumento de captura dos negros ao sistema.

Disso tudo, não tem como se concluir que a ditadura venceu. Que de 1985 a 2012, não houve avanço, em alguma dimensão, na construção de direitos, por mais relativos, limitados e seletivos que sejam. As coisas mudaram. Não se pode perder a medida de uma perspectiva crítica, com ainda menos razão no materialismo histórico. As teorias do estado de exceção, à Schmitt e derivados, muitas vezes se colocam na perspectiva do poder soberano. Não se limitam a pensar o estado e a soberania, mas a ocupar o seu lugar de subjetivação, o seu ponto de vista. Por um lado, não deixam de ser muito sofisticadas no diagnóstico, no detalhado escrutínio da malha de capturas, dos panópticos e regimes de exploração. Por outro, tudo parece matizado pela dominação, em tons cinzentos, derrotistas. Deixam um sabor de angústia. Dar voz aos derrotados é coisa diversa de derrotismo, que é ver a história pelo olhar do chicote. As resistências capturadas, os sujeitos colonizados pelas paixões tristes da derrota, todos apavorados diante do leviatã invencível e perverso. E para o chicote, das costas só existem as feridas, os gritos, a dor enquanto abatimento físico e moral. A vida é mais do que isso.

Como pensavam Benjamin e Pachukanis, há vida para além do direito estatal, além da ordem monológica da soberania, além da lógica do chicote e suas formas de narrar e viver o tempo histórico. A exceção também pode ser afirmativa. Também se pode fazer um direito vivo, no trabalho concreto da multidão, nas lutas e movimentos constituintes de um direito como esfera de realização plena, um outro modo de produzir e se relacionar, uma potência e não uma norma. E é nela que a resistência pode acontecer. Essa exceção importa mais do que todos os catastrofismos.

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